Uma das imagens mais
recorrentes da minha infância é a de uma bolha gigante, criada e confeccionada
por mim na minha fantasia infantil para me isolar do resto do mundo e me
proteger de tudo o que eu temia (o que equivale a dizer o mundo inteiro,
praticamente!). Ao contrário do que essa imagem introdutória possa remeter, eu
não fui uma criança solitária, não tem como ser solitária quando se tem 4
irmãos, também não fui uma criança antissocial, sempre tive amigos, gostava de
me relacionar com as pessoas, mesmo que isso me trouxesse certo sofrimento. No
entanto, paralelamente às minhas relações, vivia nesse mundo à parte, minha
bolha particular, frequentada por mim e por minhas fantasias, que eram muitas, talvez
por isso a necessidade de um mundo só para elas. Esse “viver à parte”, ao mesmo
tempo escolha e condição, me tornou uma pessoa muito curiosa pelo mundo dos
outros, como eu tinha o meu mundo próprio, sabia, no íntimo, que todos têm o
seu, então, sempre quis ter acesso a esses mundos, descobrir o que tinha dentro
das bolhas de cada um, e acredito que foi aí que a psicanálise entrou na minha
vida.
Não lembro em
que momento fiz a relação entre as minhas buscas e o divã, mas sei que já na
infância desenvolvi um fascínio pelo que ele representa, achava que ali estava
a chave que abriria as portas de todos os outros mundos. Com a formação, descobri
algo muito importante pra mim, que para escutar é preciso sair do registro das
moralidades e dos juízos de qualquer espécie, a psicanálise nos lega o direito
à singularidade, à nossa, e consequentemente a do outro. Para alguém que desde
tão cedo busca o direito ao próprio mundo, encontrar um lugar onde ele é
plenamente respeitado, é como avistar água no deserto. Por outro lado, esse
direito também nos encaminha para a assunção de um lugar de alteridade, onde as
bolhas se tornam obsoletas, e os “mundos” são bem mais etéreos e subjetivos. Não
é um percurso fácil para quem cultivou uma bolha durante uma vida, mas é para
onde o desejo me leva desde muito pequena, e para onde eu sigo, desde então,
tentando transformar o medo de perder a proteção do seu invólucro, ou de ser
engolfada por ele, em um balé, uma dança na qual eu não estou nem dentro, nem fora,
mas compondo passos em parceria. Nesse percurso tão particular, a escuta foi o
instrumento que escolhi para me conectar ao outros mundos, e assim, quem sabe,
poder prescindir do meu, tornando-o, dessa forma, muito mais meu.
Não foram poucas
as vezes que vi se reportarem à minha profissão a algo como “escutar o problema
dos outros”, nunca me identifiquei com esse ponto de vista, mas também não
sabia explicar porque ele está tão
distante da práxis psi, até que essa distinção se tornou clara para mim: eu não
escuto problemas, escuto singularidades, constatação que não torna a escuta
algo simples, mas a retira do lugar comum do muro das lamentações.
Escutar é outro
conceito que encontro dificuldade em explicar, mas arrisco dizer que, se é pelo
ouvido que entram os sons que fazem de nós seres ouvintes, na escuta, eles são
tão somente instrumentos, escutamos com a alma, escutamos com o corpo inteiro, para
escutar é preciso essa entrega ao mundo do outro e a um percurso, que nos
convida a encarar a falta com disposição e coragem, escutar é acolher a
alteridade!
Como não poderia
deixar de ser, minha história me trouxe até aqui, meu fascínio pelo mundo dos
outros me transformou em uma escutadora atenta desses mundos, então, é isso que
eu faço, sou uma escutadora, escuto histórias, todas elas contadas por seus
protagonistas, e procuro auxiliar esses “contadores” a lerem suas próprias
histórias, das quais frequentemente se vêm à margem, reconhecerem no seu
discurso algo de seu, suas próprias letras, se apropriando de suas narrativas e
do seu desejo, do seu mundo!
Texto: Brisa Maria Fraga
Foto: Enilda Teixeira
segunda-feira, 27 de agosto de 2018
Que lindo mana!!! és mesmo uma escutadora nata!!! Amo-te!!!
ResponderExcluirObrigada mana! Também te amo! ❤
ExcluirEspetacular teu texto Brisóca!!!! Toda a minha admiração por tua capacidade de escuta tão singular, intensa, atenta.... Uma escuta que faz da vida como um todo e que a faz com todos os teus sentidos... Isso que a torna tão tu mesma,essa que a gente adora e que sempre nos encanta.
ResponderExcluirBjão
Não tem identificação, mas pelo apelido carinhoso, e pelas palavras inspiradas, Sandroca, só pode ser você, minha parceira de tantas coisas!!! Muito obrigada pelo olhar envolvido com que encaras meu texto e meu mundo 😊, escutadora não menos implicada!! Bjão
ExcluirUma escutadora de história, eu diria uma encantadora de vidas. ao escutar o outro você está fazendo com que soltem suas amarras....seus medos, suas angustias, fazendo assim que saiam de suas bolhas. Bjs e parabéns pela linda escrita.
ResponderExcluirObrigada, querida Enilda, que encanta o mundo através das suas lentes sensíveis! 😘
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