Preciso falar sobre Laerte


A primeira vez que vi Laerte Coutinho (conhecia um pouco de seu trabalho, mas nunca tinha visto seu rosto) foi há cerca de 10 anos, com muita chance de estar sendo traída pela minha memória, o que importa no entanto, não é a precisão dos fatos, mas a sensação que sua história suscitou em mim, que ficou guardada em algum cantinho da memória, separadamente de toda a conjuntura que a compõe, como um elemento cindido, apartado de seu contexto. Tanto que hoje preciso fazer um esforço para entender o porquê dessa tal sensação, sabendo que algumas peças desse jogo se perderam, talvez para sempre. A memória é assim, não tem compromisso com a realidade, mas com os afetos que depreendem dela. Lembro que foi num programa de entrevista que gostava muito, transmitido pela TVE, e que ela (não sei se já era esse o pronome de tratamento de sua escolha), falava justamente do processo de transformação no qual se encontrava, e para o qual não tinha definição. Usava brincos e batom, mas não se intitulava travesti, aliás, não se intitulava... Isso me deixou confusa, incomodada, digamos que não entendi qual era a dela! Preconceito? Talvez, pré-conceito? Certamente! O sem nome de sua sexualidade não cabia nos meus conceitos preconcebidos. (Veja bem, o que me incomodou não foi o fato de sua orientação sexual não se encaixar nos moldes tradicionais, mas o fato de não se encaixar!). O interessante é que na época esse incômodo não foi percebido por mim, embora tenha apresentado seus efeitos, uma espécie de cegueira imposta à qual me resignei: simplesmente fechei os olhos para Laerte e sua "desorientação", as vezes em que a encontrava aleatoriamente estampando uma matéria de revista ou jornal, ou sendo assunto de alguma notícia na tv, minha atitude era de não tomar conhecimento, não queria saber de uma pessoa que não sabia o que era!!!
Muitos anos depois, ainda sentindo resquícios desse estranhamento, resolvo saber qual é a minha, e me dar uma chance! Abri os olhos para assistir o documentário Laerte-se, e ela, já nas primeiras cenas, abriu meu coração e minha alma para sua singularidade tão singular! (a redundância é proposital, e nesse caso, cabe como uma luva). Para quem imagina que assistirá a uma ativista levantando a bandeira LGBT, é tudo que não verá, embora Laerte, especialmente através de seu trabalho como cartunista, sempre tenha se colocado engajadamente nas questões sociais e políticas de nosso país. Através de seus personagens, discute com inteligência e humor causas do universo LGBT e outras tantas, por outro lado, em seu mundo particular, deseja apenas não ter que se preocupar em dar uma resposta, seu corpo, sua sexualidade, e a complexidade de sua existência, é algo com que lida na medida em que vai se delineando para ela. Afinal, me pergunto se não deveria ser assim para todos!
Se na época a indefinição foi o que me incomodou, hoje é justamente o que me encanta! Laerte nos ensina que desejar não é apenas estarmos bem com nossas escolhas, mas também e especialmente, acolhermos nossas incertezas e medos. Eliane Brum, uma das responsáveis pela direção do documentário, pergunta a ela em determinado momento: um corpo fica resolvido? Luciano Mattuella, psicanalista, colunista do Sul21 pontua em sua coluna sobre o documentário: um corpo se produz!
E uma singularidade, se resolve? Se define? Felizmente não! Não fosse isso, eu estaria condenada a uma cegueira eterna, que apresenta-se hoje para mim como ponte, passagem de um lugar sombrio para as inúmeras possibilidades de ser e sentir!
Encerro da maneira mais oportuna: Laerte-se!

Texto: Brisa Maria Fraga
Foto: Mariana Matos

*Texto escrito em 2017, por ocasião do lançamento do documentário Laerte-se, produzido pela Netflix.
sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário